Thursday, April 26, 2007

O quão surpreendente pode ser o “ódio”













Entramos na sala, as luzes azuis pairam sobre o palco… parece que vemos as ambulâncias próximas de nós… Fernanda Lapa entra em palco.
No cenário caixas estão envolvidas pelas luzes azuis que numa incessante busca vão sendo apagadas e substituídas por luzes amarelas que iluminaram o recinto da representação.
Tenho consciência que, neste momento, não é a génese de jornalista que está em acção; contudo, para falar da peça “Ódio”, protagonizada pela actriz Fernanda Lapa, é difícil sermos incisivos, objectivos e cingirmo-nos ao facto. A verdade é que os factos são muitos, pois estamos a falar de stress pós-traumático.

Fernanda Lapa regressou a Matosinhos, tal como prometeu, com a peça “Ódio” no passado dia 24. Um monólogo em que Fernanda representa um homem que foi recrutado para a Guerra Colonial e sobreviveu aos combates; todavia, a luta travada foi outra. A luta pela vida de um ex-combatente é numa incessante lembrança de tudo o que aconteceu outrora e que não o deixa dormir, comer ou sequer cheirar. Não o deixa ter uma vida chamada “normal” com uma rotina e emoções. É uma vida de solidão e conflito interior que Fernanda Lapa vai interpretando ao longo de uma hora. O ódio, mas, sobretudo, a dor e o trauma de uma parte da vida na Guerra, combatendo contra tudo o que lhes aparecia e convivendo com cadáveres. A guerra terminou, porém, aquele sofrimento e aqueles momentos retiveram-se na memória que deixou se avançar e estancou em comparação com cada instante vivido em que “as gotas da loucura tramavam-nos a todos”.
“Aqueles momentos foram anos para mim” e o desespero e, simultaneamente, o desejo são enquadrados no contexto da derrota. A perda é a que prima por entre “troféus de guerra, no meio de uma cabeça de espada”. Suportada a tensão sempre vivida e “as experiências que a traumatizaram” continuam a fazer parte da sua vida. “Aqui todos estão mortos” e a morte, na guerra, pode estar em todo o lado.
Uma linguagem abrupta que expele, efectivamente, o trauma que começa “quando cheguei à Guiné estavam a encaixotar mortos”, refere a personagem de Fernanda. São estas as caixas, então, dos mortos, das vidas, da sua vida e das suas vivências, de tudo o que tem e que perdeu. Há uma busca continuada pelas recordações pois é delas que vive. É daqueles momentos que “a seguir vomitamos todos em conjunto e damos de comer às formigas e a outro tipo de bichezas em sofrimento”.
É o medo que se deixa transparecer, “os orgasmos de ódio na catinga da morte” e a canção de embalar “Fogo, fogo, parem as armas, cessar fogo”.

Fernanda Lapa comoveu muitos, uma vez que são muitos os casos detectados em Portugal com este problema. Homens que viveram e mulheres que vivem com o companheiro em permanente angústia.
Em palco, há medida que a representação vai avançando vai-se construindo todo o ambiente de guerra. A guerra que os conduz por medalhas “medalhas para quê? Para depois levarem com um balázio nos cornos”. Quando voltam da guerra é difícil “tive de me adaptar ao mundo outra vez”.
“À medida que o tempo passava tinha a sensação de estar em cima de uma esteira que tapava um buraco bem fundo (…) é a minha alma pesada”. Se há casos em que o apoio não falta, há outros em que os mais próximos abandonam os ex-combatentes. Efectiva-se a solidão em cada passo que dão “os natais passo-os sozinhos… a minha família não quer nada comigo, correu-me com um chuto na peida”.

Vestir a farda é uma palavra sem ordem e, a personagem de Fernanda, evoca ao “tio”. O “sobrinho” é a voz, a voz que está sempre a orientar a conduta, a revolver recordações, é como que uma pessoa que estivesse a falar com ele. Quer-se livrar “dele” mas não consegue, e isso atormenta-o.
As insónias provocadas a cada noite são “a minha maior consumição, mais do que o próprios pesadelos”. A vontade que se despoleta é a de “sumir”, de desaparecer porque “os nossos cérebros estão a perder as massas cinzentas”.
São vidas como que deambulantes em que “Roem as nossas almas sem dó nem piedade. Tiram-lhes tudo, tudo aquilo “que há de bom em nós vai com ele para os anjinhos”. As mentes vivem em constantes buscas ao passado “É um tambor, as baquetas não se cansam, não se partem. Este som agonizante que tenho de suportar.”
No final chega a uma constatação já sabida “Eu sou a agonia em pessoa… a morte”. Sobreviveu mas continua com o sofrimento como se lá estivesse ainda, como se visse igualmente companheiro atrás de companheiro a ser “encaixotado” e os visse serem abatidos ao seu lado. Acorda de noite e os pesadelos e a realidade em que vive é a de outro tempo que continuam a decorrer como se fossem no agora. Daí “Eu sou a vida morta, atirada ao lixo. (…) Eu sou a dianteira e um cão doente. (…) Eu sou a guerra”. Os troféus não são nenhuns e a desvalorização pelos que combateram em prol do nosso país não tiveram quaisquer reconhecimentos. Medalhas em troca de vidas.
A peça finda com a mesma fala com que iniciou: “No meu sonho estou a fornicar uma leoa, ela come-me (…) sobrevivo estando dentro dela. No meu sonho eu vejo uma luz… No meu sonho eu existo sempre e isso faz-me acordar (…)”.

Anabela da Silva Maganinho
P.S. Peço desculpa, mas considero que esta peça deve ser descrita e não sintetizada. “As falas são importantes, tudo o que aqui expus é relevante e, se me cingisse ao relato jornalístico, muito iria faltar… peço desculpa por esta falha e espero que mesmo assim gostem. Falta apenas a magnifica representação da Fernanda!

1 comment:

Anonymous said...

Por que nao:)