Friday, April 13, 2007

O palco da vida

Fernanda Lapa, actriz e encenadora portuguesa, regressou a Matosinhos, juntamente com João Cabral e com Ângela Rodrigues, para a exibição da peça “Chavela”. A peça estreou no dia 8 de Março – Dia Internacional da Mulher – e até dia 26 fez-se acompanhar da exposição “Dez mulheres, dez espectáculos”.






O palco da peça "Chavela"




Fundadora da Casa da Comédia, Fernanda Lapa conseguiu impressionar uma das figuras mais ilustres do século XX – Almada Negreiros. Em 1995, fundou a Escola das Mulheres. Entre tantos anos destacamos 1979, ano em que Fernanda Lapa foi bolseira da Secretaria de Estado da Cultura, na Polónia, colocando-se ao seu dispor a possibilidade de estagiar em Teatros do país, nomeadamente no Teatro Stary da Cracóvia. Leccionou durante alguns anos em várias escolas de teatro e na Universidade de Lisboa, embora o que realmente lhe dá o maior prazer é exercer a profissão. Teatro, Cinema e Televisão constam de um tão vasto repertório iniciado profissionalmente no ano de 1963.
Já no virar do século, em 2005, foi-lhe atribuída e Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura e, no mesmo ano, recebeu o Globo de Ouro.

Prontamente se disponibilizou para a entrevista proposta desvendando a cada frase um episódio do gosto pela representação que começou desde muito cedo, “ainda durante a infância”. Fernanda explica que, “contrariamente ao que se possa pensar, nem todos os actores são muito extrovertidos, alguns são tímidos e o facto de se poderem revelar através de máscaras – que é o que são as personagens – ajuda-os muito.”.
Quanto à primeira interpretação e encenação foi na antiga quarta classe, no Colégio Santa Maria de Belém: “A Directora, que comemorava o seu aniversário, era uma mulher muito humana de quem todas gostávamos imenso. Havia, na altura, as histórias aos quadradinhos que se chamavam o “Mundo de Aventuras” e o “Cavaleiro de Andante”; a partir daquelas personagens escrevi um texto. Depois escolhi as coleguinhas para fazerem as personagens, uma das quais interpretada por mim, o Príncipe Valente. Fui o Príncipe Valente, porque ele usava franjinha e o cabelo pelos ombros tal como eu. Consegui, desta forma, entusiasmar as meninas e as suas mães para fazerem os fatinhos”, recorda.
Aos nove anos, Fernanda Lapa arriscava por um mundo que viria a ser o seu ainda que com as diversas repercussões.
Contudo, o seu gosto por tão diversa arte manifestava-se ainda com pequenos gestos como de ligar o Rádio, na Emissora Nacional. “Adorava ouvir as emissões de sábado, às sete da tarde. Coincidiam com o horário em que chegava o padeiro com o pão quente. Esse foi um dos meus prazeres: comer o pãozinho quente com uma barra de chocolate dentro e sentar-me a ouvir as histórias com as vozes e a imaginar cenários, imaginar …”, lembra Fernanda e discorre que, actualmente, este cenário já não se compõe instintivamente, porquanto os mais jovens não precisam de imaginar nada, “são condicionados por aquela imagem, pelos gostos que a imagem impõe.”
A actriz que tem agora o seu nome como um dos grandes nomes da representação revive, por momentos escassos, o tempo de luta para a consagração. Pretendia ir para o Conservatório e para tal era apenas requerida a quarta classe, portanto, “a representação era uma profissão pouco bem vista. Conotavam-se e, ainda de certa maneira se continuam a conotar, actrizes como prostitutas, actores como gente de má fama. E, portanto, os pais burgueses achavam pessimamente que isso acontecesse. Ingressei na faculdade e fui imediatamente para o Teatro universitário, aquando das greves académicas de 1962/63.” As Associações Académicas foram encerradas assim como o grupo de Teatro .
Por esses anos nasceu a Casa da Comédia, onde Fernanda se estreou profissionalmente com a peça de Almada de Negreiros “Deseja-se Mulher”. Esta “Casa” era dirigida por um homem que, segundo Fernanda Lapa era “um poeta do teatro, o Dr. Fernando Amado. Ele viu-me no Teatro Universitário e convidou-me. Tornei-me, deste modo, uma das fundadoras da Casa da Comédia, até que casei”.
Com o casamento e com filhas, a profissão era deveras difícil conciliar, sobretudo quando o marido não apoia. A actriz só podia representar esporadicamente, pois como refere “eram outras épocas”, todavia, “mais tarde, tive a grande sorte de confraternizar e de ser colega do Bernardo Santareno, numa fundação de reabilitação de cegos. Consegui, no fundo, viver bastante o Teatro por dentro: pelas coisas que ele escrevia, pelos problemas com a censura, pelos espectáculos que íamos ver, pelos actores e autores que iam falar com os nossos cegos.” Com esta participação, Fernanda nunca deixou o mundo a que pertencia e, ainda que não cedesse numa primeira fase, Bernardo incentivou-a a largar essas vidas e definitivamente ir para o Teatro: “Só que era muito complicado fazer-se Teatro, uma vez que tinha de se fazer muita porcaria para sobreviver”. O Teatro Nacional estava na decadência, o Teatro de Revista, realmente não o género que despertava entusiasmo em Fernanda. Restava o Teatro Comercial que, de vez em quando, “tinha alguma qualidade mas normalmente era muito mau”, e salienta que “havia uma ou outra possibilidade de fazer coisas mas à revelia, sempre com o coração na boca, temendo que a censura podia proibir. Não estava muito disposta a ceder e a fazer porcarias, portanto, realmente só após o 25 de Abril e das minhas filhas serem adolescentes ou pré-adolescentes, é que eu decidi que sim”, declara.
Regressou à ribalta para dar o contributo, essencialmente ao Teatro que é, sem dúvida a sua paixão, e nunca mais parou.

Anabela (A) – Passadas algumas décadas, quem foi ou continua a ser uma referência?

Fernanda Lapa (FL) - Tenho muitas referências. Tive o grande prazer de conhecer gente que viveu esses tempos muito difíceis, em Portugal, e que foi motor de transformação. Muitos deles já morreram… Vamos falar, sobretudo, nos intelectuais ainda que noutras classes sociais tivessem permanecido, verdadeiramente, homens e mulheres, operários e mesmo camponeses. Pessoas que foram exemplos de vida para mim. Tive a felicidade, e isso ninguém me tira, de viver aquilo que muitas pessoas acham odioso - o PREC. Assisti ao nascimento das cooperativas agrícolas nas quais se vivia a excitação diária, um encanto, a descoberta e a solidariedade. José Gomes Ferreira, Bernardo Santareno, Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado, Sophia de Mello Breyner são referências não só artísticas como éticas e de verticalidade, na minha concepção. Inclusive o Almada, que ideologicamente estava a milhas de distância da esquerda, porém, aos génios perdoa-se tudo. Aos 18/19 anos estava a fazer o “Deseja-se mulher” como actriz, ainda ele era vivo, e ele disse-me: “a menina podia ser dadaísta”. Eu fiquei muito aflita, por não saber se seria um insulto, ou o que poderia ser; e enquanto não descobri o que era o dadaísmo não descansei… Tive realmente a grande sorte de encontrar gente que me abriu os olhos.

Fernanda Lapa destaca o “grande prazer de ter uma profissão que gosto muito, ao contrário de muita gente que para sobreviver tem que fazer coisas que não gosta”. Considera-se extremamente privilegiada, porque “faço o que gosto e ainda me pagam”.

A – Será que podemos dizer que a representação vence qualquer barreira e supera o estado de espírito do actor?

FL - Não. Não somos máquinas. Há dias melhores e há dias piores. Seria o ideal - e é isso que tentamos -, que toda a nossa vida privada fique lá fora. Todavia, há uma coisa que também é muito importante: a comunicação muitas vezes não verbal que se estabelece com o público. Sentem-se ondas positivas e negativas. Por vezes enganamo-nos, o silêncio é tão grande e parece haver um bloco de gelo entre nós, mas de repente, o público reage entusiasticamente e é uma grande surpresa. Tudo é muito variável. Os actores não são máquinas são seres humanos, é claro que a técnica é a de conseguir concentramo-nos e actuarmos cada dia no palco em vez da personagem.

Apesar de “pagar bastante facturas” nos anos subsequentes à primeira encenação, Fernanda Lapa desmistifica o facto de ser encenadora. Na época “havia poucas no nosso país e as que perduravam eram consideradas como mulheres sabichonas e portanto ninguém as queria no elenco”, lamenta a actriz.
Ora nada podia parar Fernanda que não se deixava intimidar. Ainda hoje tenta alcançar, sempre que possível os seus objectivos.
A primeira vez que subiu ao palco profissionalmente com a peça “Deseja-se Mulher” ficou “completamente anestesiada”. Não muitas são as coisas que se lhe avivam, era “ uma nuvem de emoção e de confusão”. E são as palavras do Almada que relembra. Ele ia assistir a todos os espectáculos.” A Vampa, personagem de Fernanda, numa cena chorava, tinha as mãos em cima da mesa sobre o rosto e, no instante, caíam lágrimas. Almada Negreiros dizia sempre - “que máscara!”. Já não passava dia nenhum que não estivesse à espera daquele momento. Foi, efectivamente, a expressão que ficou na memória até hoje, perante tão grande miscelânea de sentimentos.

A - E era uma adrenalina que ainda hoje sente?

FL – Penso que hoje ainda mais. Há medida que envelhecemos vamos percebendo como tudo é bem mais difícil. Prova do que acabo de dizer é que na minha primeira encenação fiz, simultaneamente, a encenação e a protagonista, coisa que nunca mais repeti, tal é a inconsciência. Por acaso correu tudo bem. Em contraponto, a última encenação que eu fiz foi a “Medeia” e falharam vários actores para interpretarem a personagem do Mensageiro. O director do Teatro Nacional, António Lagarto, desafiou-me para ser eu a fazê-lo. Contudo, apenas se tratava de um monólogo de cinco minutos. Mesmo assim só o comecei a trabalhar a sério nesse texto cerca de quinze dias antes da estreia. Assim, quando se vai envelhecendo, sentimos que a responsabilidade é tão maior que chegamos a pensar minutos antes de entrar em cena “mas por que me meti eu nisto?! Mas que disparate. Só me apetece é ir embora.”

A - E o público é o mesmo que hoje pode encontrar quando sobe ao palco?

FL - Não. O público de Teatro, nos anos em que iniciei o percurso, era muito diferenciado. Havia o público da revista e do Teatro comercial e o público das poucas coisas que aconteciam, da chamada vanguarda. Dois públicos completamente específicos e mínimos. Depois houve uma explosão, aquando do 25 de Abril: uma explosão de grupos, tendências, estética, público até à grande crise. Surgiram os programas apelativos na televisão, começou a haver uma enorme recessão. Os anos 80 foram terríveis. Na década de 90 a gente nova voltava a aparecer nos Teatros, porém, sem grandes critérios de qualidade. Neste momento, sinto que continua de qualquer maneira a haver públicos diversificados: vai-se a espectáculos chamados espectáculos institucionais e há um tipo de público; a um determinado grupo e há os militantes daquele grupo. Também o público mais jovem começa a estar mais preparado para ver Teatro.

O público representa, para Fernanda Lapa - “medo, tenho medo do público. Um grupo é um grupo, mesmo que não se conheçam entre eles, mas formam um todo que dispara energias que podem ser positivas ou negativas”, e afirma “não quero repetir aqueles clichés de que “amo o público, o público é a minha paixão”, acho que tudo isso são idealizações”. Fernanda Lapa quer comunicar de forma a ser entendida e, porque não? Amada. “É por isso que às vezes os críticos têm grandes ciúmes de nós, porque apesar de tudo os actores são amados”.
Como actriz de longevidade duradoura, a sua predilecção – entre Televisão, Cinema ou Teatro – incide sobre o último, sem dúvida. A paixão pelo contacto imediato e não mediatizado levam Fernanda Lapa para o mundo que espera conseguir, que é o mundo do seu próprio espaço partilhado. Fez Teatro, Teatro-dança, e Ópera com textos de Jean Cocteau, Copi , Arthur Miller, Caryl Churchill, Paula Vogel e muitos outros.

A – Qual o género sobre o qual recai a sua eleição: Teatro, Teatro-dança ou Ópera?

FL –No Teatro-dança e Ópera operei unicamente como encenadora, porque não canto nem na casa de banho (risos). Gosto de encenar seja o que for, para mim é um desafio. Obviamente as pessoas que me conhecem sabem que se tiver de escolher entre dois textos prefiro uma tragédia a uma comédia. Embora considere a comédia muito difícil de fazer. Há tempos e códigos que os ingleses sabem fazer muito bem. Nós, portugueses não costumamos ser tão subtis, pelo que esse tipo de comédia não me interessa nada.

A - Qual considera ser o maior obstáculo que o Teatro tem vindo a ultrapassar?

É sempre o mesmo. É a falta de interesse dos sucessivos governos pelo Teatro. O Teatro foi sempre evitado pelo Poder, por ser um grande meio de crítica: social e política. Agora a censura é outra, são os lobbies. Portanto, quando nos comparamos com os outros países da Europa é uma tristeza. Andam a dar uns míseros subsídios, pensam que as coisas podem ser feitas com tostões, o que serve para desencorajar. Se nos deslocarmos a Espanha as condições, a capacidade, a divulgação, as revistas de Teatro, a promoção, tudo isso e o entusiasmo com que o público vivência a arte do teatro… e os espanhóis não são diferentes pela natureza, foram educados a gostar de Teatro, enquanto nós somos deseducados a não gostar de Teatro.
Estamos constantemente a ser insultados como subsidiodependentes. Parecemos pedintes, quando todos sabem que até o Teatro comercial às vezes não dá dinheiro. O Teatro não comercial, o Teatro que se afirma como Arte é um serviço público, constituindo-se obrigação do Estado.

A - Qual foi a situação mais difícil pela qual já passou no Teatro?

FL - Ontem, dia 23, tive uma branca, algo que já não me acontecia há muito tempo. Devo ter havido outras situações complicadas, mas esta como é muito recente dou-lhe primazia. Esteve cá um público muito específico, pessoas que estão presas, homens e mulheres, e, quando tirei uma arma, ainda que fosse uma arma de brincar, houve uma reacção muito emotiva. Fiquei muito perturbada e tive uns minutos sem saber como continuar o espectáculo por se ter tornado um momento que me emocionou muito.

A - Há alguma personagem que ainda não encarnou e gostaria muito de o fazer?

FL - Acho que milhões de personagens. Há tantas e tão extraordinárias, tão maravilhosas. Sou directora da Escola de Mulheres e normalmente faço as encenações, mas quando represento escolho as personagens que realmente me apaixonam. Já fui Clitemnestra, numa produção que juntava textos de Yurcenar e Ritsos. Interpretei Crisótemis que é a filha da Clitemnestra e irmã pacífica da Electra, numa versão do Ritsos. Gostaria muito de fazer personagens trágicas. Há pouco tempo representei textos de Santareno e a panóplia de personagens masculinas e femininas era tão rica nessa selecção a que chamámos BernardoBernarda, que passei a interessar-me por interpretar personagens com idades, temperamentos e até de Género diferentes de mim.


Desenvolveu acções pedagógicas passando pela Escola Superior de Teatro e Cinema, pelo Chapitô e pela Universidade de Lisboa. No Porto, esporadicamente, prontificava-se para colaborar nos trabalhos finais dos alunos das Escolas de Teatro. “ Não sou professora por profissão porque isso limita muito a nossa vida profissional. Não troco isto por nada.”, assume que é muito cansativo dar aulas “Gosto muito de trabalhar com jovens, mas gosto de trabalhar já na prática, já a encenar , já com espectáculos para fazer para o público”.

A - O que tenta passar essencialmente aos seus alunos e aos apaixonados pela representação?

FL - Normalmente quando me chamam já não é para dar aulas, já é para os trabalhos finais, portanto, é como se fosse uma pré-profissionalização. E o que eu exijo deles é o mesmo que exijo a profissionais: rigor, entendimento do que estão a fazer, criatividade, respeito pelo colega, saber ouvir, respeito pelo público, generosidade, ausência de vedetismo. Não só questões técnicas como éticas.

A- Esses são os primórdios da representação na sua opinião?

FL - Não. Há muitos outros: há o saber respirar, o saber dizer, saber entender um texto, saber-nos apropriar das palavras do autor, dominar um corpo, saber pôr um corpo ao serviço da ideia que queremos transmitir, e tudo isso são técnicas variáveis que têm de ser ensinadas por muitos professores, não somente por um.

No que concerne ao cinema, participou em alguns filmes. Em “Recompensa”, de Artur Duarte, foi protagonista no ano de 1979. Treze anos depois interpreta “Solo de Violino”, de Monique Rutler. Faz e dirige Novelas mas prefere Séries televisivas “O processo dos Távoras”, “Ballet Rose”, “Raia dos Medos” e o mais recentemente “Pedro e Inês”.

A - Assinou vários trabalhos em séries e algumas novelas, nomeadamente Pedro e Inês. Foi difícil toda a elaboração de uma série que remonta idades para muitos desconhecidas?

FL - Não. O que é difícil é esperar. Na televisão, o que acontece é que passamos horas à espera de entrar, maquilhados, vestidos, às vezes com fatos pesadíssimos, com perucas… e quando já estamos com a maquilhagem nos joelhos (risos) e exaustos é que vamos fazer as cenas. Agora fazer cenas de época não, o ser humano é sempre o ser humano.

“Anos mais tarde, em 1995, com um conjunto de amigas fundámos a escola de Mulheres que privilegia o trabalho, a escrita e a problemática feminina no Teatro, assevera Fernanda Lapa.
Concorda que eram tempos difíceis os que viveu, completamente distintos dos de hoje, foi num combate para conseguir um lugar, ou pelo menos o lugar que hoje ocupa. “De qualquer maneira, tudo melhorou, qualitativa e quantitativamente, mas há coisas que não estão resolvidas e basta olhar o panorama do Teatro português, e continuar a perceber que quem domina são os homens”. Há muito poucas companhias dirigidas por mulheres que estão equiparadas aos subsídios das companhias dirigidas por homens. Fernanda revela que não se considera “melhor nem pior do que os melhores que estão aí e, no entanto, sou capaz de ter dez vezes menos subsídio na minha companhia. Não tenho espaço e isso acho que tem alguma coisa que ver com o sexismo, sim”.

A - Juntamente com Isabel Medida tem então a responsabilidade da Escola de Mulheres – Oficina de Teatro de que é directora artística. O papel da mulher no Teatro não é apenas como figurante ou personagem secundária mas como uma pessoa que merece o papel principal?

FL – Não. Suponho que a lei da paridade se devia aplicar ao Teatro. O mundo é composto por homens e mulheres e, se nele constar um défice democrático, presenciamos um mundo mais pobre. Portanto, o que acontece é que durante séculos ou milhares de anos mesmo, eram os homens quem escreviam, eram os homens quem representavam. Não nos esqueçamos que as tragédias e as comédias antigas eram representadas por homens, as mulheres nem punham lá os pés. Mais tarde exibiam-se as divas e as vedetas, mas que mandavam pouco ainda que servissem para chamar público. Geralmente eram patrocinadas por algum aristocrata rico, repartindo-se por uma condição dúplice que lhes era atribuída: de serem actrizes e semi-prostitutas. A actriz cidadã surgiu unicamente no século passado. Deste modo, o que penso que acontece no Teatro mundial e, inclusive, no português é que maioritariamente os temas e as questões que são colocadas em cena são questões masculinas ou sob ponto de vista masculino. Mesmo que se fale das questões das mulheres é quase sempre do ponto de vista masculino. Raramente é a afirmação da voz feminina que é feita em palco.

Efectivamente, actriz de renome que mostrou mais uma vez o talento ao interpretar a vida de umas das grandes mulheres do século precedente. Estamos a falar de Chavela Vargas, uma cantora que apesar de nascida na Costa Rica, se tornou numa figura irreversível da música mexicana.
A peça expõe o amor de duas mulheres – Chavela e Pilar – interpretadas por Fernanda Lapa e por Ângela Rodrigues, contado por um escritor, o actor João Cabral.

A - Como é encarnar a personagem de Chavela Vargas?

FL - É uma personagem interessante, porque toda ela é rica. Não podemos dizer que é uma mulher serena, Chavela foi uma mulher que acabou, consequentemente, por enveredar no alcoolismo como forma de se defender da sociedade machista. A arma que sempre trazia com ela, transmitia essa ideia de defesa; Chavela tinha uma orientação sexual diferente do chamado normal, por ser lésbica. Três factores tornaram-na numa figura extremamente complexa e, para uma actriz, é um bombom conseguir-se pôr na sua pele, não sendo - como eu não sou – nem lésbica, nem alcoólica, nem pistoleira. Embora pareça controverso, todo o ser humano tem tudo (é um cliché mas é verdade), tem tudo dentro de si (podemos ser assassinos, podemos ser bêbados, podemos ser gays,…) é só decidirmos e aceitarmos que podemos ser tudo isso. Descobrir isso dentro de nós e depois colocá-lo ao serviço da personagem. Colocarmo-nos na situação da personagem é a tarefa maior do actor/actriz.

A – A peça foi escrita pelos irmãos Pedro e Filipe Pinto, jornalistas da RTP. Como surgiu a ideia de projectar a peça “Chavela”?

A causadora (maravilhosa) foi a Luísa Pinto que também é a responsável pela exposição das dez mulheres do século. Ela tem feito muitas coisas inovadoras, numa primeira fase muito ligadas à Moda, depois à Moda/ Teatro, para chegar ao Teatro. É a terceira vez que colaboro com a Luísa como actriz - na “Maria Callas”, que estreámos na Expo 98, na “Coco Channel - Uma Mulher Fora do Tempo”. A Luísa foi figurinista em espectáculos da Escola de Mulheres. Agora convidou-me para fazer Chavela Vargas e eu tive o maior prazer de mais uma vez colaborar com ela.

A - O que teria mudado se fosse Chavela?

FL - É muito difícil responder, porque só sendo ela própria. Não podemos julgar e dizer: se fosse eu fazia de maneira diferente. Se fosse Eu, não era a Chavela! Ela viveu e continua a viver a sua vida à sua maneira. Esteve 15 anos completamente alcoolizada, bateu no fundo, e só foi descoberta na Europa já depois de velha. Talvez tenha sido esse o destino que escolheu. Ela é uma sobrevivente e, neste espectáculo, aquele pára-quedas que entra em cena parece-me bem ser o símbolo da sua capacidade de sobrevivência. Se havia vacas lá em baixo quando ela caiu ou não, não interessa nada, pois o que interessa é que ela sobreviveu. E isso é um exemplo de coragem para qualquer mulher.

Contrariamente ao que se possa pensar, o público foi muito receptivo à peça, apesar das circunstâncias envolventes, Chavela e seus actores são aplaudidos de pé sem hesitação. “Temos sempre pessoas no final à nossa espera para nos dizer que gostaram muito. Pensei que, não tanto a questão do alcoolismo e da pistoleira fosse controverso, mas da homossexualidade feminina que é muito pouco falada, fosse alguma coisa que chocasse muito as pessoas. Mas parece-me que o público português está mais aberto a repensar e a encarar as coisas que sempre escondeu.”, revela a protagonista.
Uma certeza podemos atestar, que Chavela tem “o seu papel na sociedade” seja qual forma for evidenciada.
O que suscitou algum interesse foi o facto de os lugares cimeiros para a exibição de peças de Teatro serem os Teatros e os Coliseus. “Chavela” esteve nas instalações da Câmara de Matosinhos ao dispor de todos aqueles que se deslocassem até lá.

A - Qual o motivo que traz esta magnífica peça a este espaço improvisado em Matosinhos?

FL - Isso interessa-me pouco. Tenho realizado espectáculos em grandes e em pequenos Teatros e gosto muito da proximidade com o público. Eu gosto de os olhar nos olhos. Normalmente é o público que se intimida quando os olhamos nos olhos. O Teatro intimo, este Teatro chamado (parece ironia) Teatro de câmara agrada-me muito. Houve um tempo em que as pessoas gostavam muito de ir ver Teatro a salas alternativas. Agora vão sobretudo aos espectáculos das salas institucionais, mas nem sempre são os melhores...

A - Um ambiente mais íntimo com o público estabelecendo-se uma cumplicidade entre personagens e envolvimento por parte dos espectadores devido à proximidade espacial. Ao que se deve este formato?

FL - Sim. Deve-se à falta de espaços tradicionais em todo o pais, nomeadamente no Porto e Lisboa. Aqui, em Matosinhos, parece que vai haver a felicidade de, dentro de pouco tempo, se erguer um Teatro. Esperemos que se cumpra, que seja bom e que o público vá, mesmo que tenha de criar o hábito de pagar bilhete. Sei que as Câmaras nos seus próprios edifícios não podem levar dinheiro; mas o público tem de perceber que o Teatro custa dinheiro.

O ano de 2005 foi o ano de vitórias palpáveis para Fernanda Lapa que recebeu, por mãos do Ministério da Cultura, a Medalha de Mérito Cultural; e o Globo de Ouro pela produção “A Mais Velha Profissão”. Para a actriz são só recompensas significativas sob ponto de vista simbólico; porque para melhorar as condições de trabalho, não serviram para nada”, e continua “Às vezes, até se é castigado quando se tem prémios neste país”.

A - Qual o maior combate da sua vida?

FL – O maior combate foi decidir-me definitivamente para ser mulher de Teatro. Para isso tive de passar por um divórcio e, a posterior, de me afirmar na profissão como encenadora, porque era muito difícil uma mulher se afirmar como tal. Considero que sou respeitada; contudo, esse combate não está ganho, uma vez que ainda sou tratada diferentemente dos meus colegas encenadores e directores de Companhia.

A – A encenação e a interpretação são as duas grandes paixões. Antes de ser encenadora e actriz quem é Fernanda Lapa?

FL - Sou uma mulher como outra qualquer. Cada vez mais caseira, gosto muito de estar em casa e de cozinhar. As minhas filhas estão crescidas e até os meus netos já o estão. Vivo sozinha com a minha cadela. Sou muito independente. Gosto de fazer o que quero sem que me repreendam ou digam que não posso fazê-lo. Deixei de projectar o meu futuro… vivo o dia a dia. Sei que as coisas falham, já tenho muita experiência disso, e depois quando ficamos agarrados a uma coisa sofremos muito. No fundo vivo o dia-a-dia e amanhã logo se verá. Deparo-me com a própria desistência de querer enriquecer alguma vez. Limito-me a querer ter para viver o quotidiano. Agora o sonho de fazer Teatro e de fazer em melhores condições, cada vez mais, isso não se perdeu e continuo a lutar por ele. Não só por mim, mas, por exemplo, pela minha filha mais nova, a Marta que está agora a fazer a sua primeira encenação. Gostaria muito que ela tivesse no futuro, condições diferentes das que tenho tido.

Fernanda não projecta num futuro isolado, consistente quanto às suas ideias apenas deposita atenção no que realmente está para acontecer “vou repor neste espaço o último espectáculo que fiz como actriz. A encenação de um homem que não é do Teatro, que é da dança – falo de Francisco Camacho. Escrito por um jovem, o texto retrata situações de stress pós-traumático na Guerra Colonial. Um problema que não só acerca homens que vão combater para a guerra, como as respectivas mulheres. Fernanda enfatiza que “o projecto que agora me está a entusiasmar mais e que me vou lançar a ele com unhas e dentes é a “Sonata de Outono”, de Bergman. Como actriz faço a mãe, a Beatriz Batarda faz a filha e o Rogério Samora será o genro. Ao mesmo tempo, vou co-encenar com uma mulher de cinema a Margarida Cardoso, que no cinema fez “A Costa dos Murmúrios”. É a primeira encenação dela e faremos as duas, para que eu não tenha de estar fora e dentro. Será uma co-produção da nossa Companhia com o S. Luís, em Novembro”.

Fernanda Lapa não vive de sonhos concretos, contudo, paira sobre uma realidade absoluta a ambição de “ter um espaço – um Teatro, um Teatrinho – e apoio para manter uma companhia. Como, presentemente, só ganhamos quando estamos a produzir um espectáculo, não podemos desenvolver um trabalho de workshop, de avançar para linguagens novas em conjunto, porque não temos um sítio, um local de trabalho, um espaço próprio com um elenco fixo”, expõe a actriz.
Fernanda Lapa trava brigas a cada passo, todavia, não estanca em si a vida que decorreu e aquela que estará vindoura em cada degrau que sobe para o palco, mesmo quando as cortinas estão prestes a fechar.

Anabela da Silva Maganinho

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